23 de julho de 2008

Viagem de um Vencido - Augusto dos Anjos


Viagem de um Vencido - Augusto dos Anjos


Noite. Cruzes na estrada. Aves com frio...

E, enquanto eu tropeçava sobre os paus,

A efígie apocalíptica do Caos

Dançava no meu cérebro sombrio!


O Céu estava horrivelmente preto

E as árvores magríssimas lembravam

Pontos de admiração que se admiravam

De ver passar ali meu esqueleto!


Sozinho, uivando hoffmânnicos dizeres,

Aprazia-me assim, na escuridão,

Mergulhar minha exótica visão

Na intimidade noumenal dos seres.


Eu procurava, com uma vela acesa,

O feto original, de onde decorrem

Todas essas moléculas que morrem

Nas transubstanciações da Natureza.


Mas o que meus sentidos apreendiam

Dentro da treva lúgubre, era só

O ocaso sistemático de pó,

Em que as formas humanas se sumiam!


Reboava, num ruidoso borborinho

Bruto, análogo ao peã de márcios brados,

A rebeldia dos meus pés danados

Nas pedras resignadas do caminho.


Sentia estar pisando com a planta ávida

Um povo de radículas e embriões

Prestes a rebentar como vulcões,

Do ventre equatorial da terra grávida!


Dentro de mim, como num chão profundo,

Choravam, com soluços quase humanos,

Convulsionando Céus, almas e oceanos

As formas microscópicas do mundo!


Era a larva agarrada a absconsas landes,

Era o abjeto vibrião rudimentar

Na impotência angustiosa de falar,

No desespero de não serem grandes!


Vinha-me á boca, assim, na ânsia dos párias,

Como o protesto de uma raça invicta,

O brado emocionante de vindicta

Das sensibilidades solitárias!


A longanimidade e o vilipêndio,

A abstinência e a luxúria, o bem e o mal

Ardiam no meu orco cerebral,

Numa crepitação própria de incêndio!


Em contraposição à paz funérea,

Doía profundamente no meu crânio

Esse funcionamento simultâneo

De todos os conflitos da matéria!


Eu, perdido no Cosmos, me tornara

A assembléia belígera malsã,

Onde Ormuzd guerreava com Arimã,

Na discórdia perpétua do sansara!


Já me fazia medo aquela viagem

A carregar pelas ladeiras tétricas,

Na óssea armação das vértebras simétricas

A angústia da biológica engrenagem!


No Céu, de onde se vê o Homem de rastros,

Brilhava, vingadora, a esclarecer

As manchas subjetivas do meu ser

A espionagem fatídica dos astros!


Sentinelas de espíritos e estradas,

Noite alta, com a sidérica lanterna,

Eles entravam todos na caverna

Das consciências humanas mais fechadas!


Ao castigo daquela rutilância,

Maior que o olhar que perseguiu Caim,

Cumpria-se afinal dentro de mim

O próprio sofrimento da Substância!


Como quem traz ao dorso multas cargas

Eu sofria, ao colher simples gardênia,

A multiplicidade heterogênea

De sensações diversamente amargas.


Mas das árvores, frias como lousas,

Fluía, horrenda e monótona, uma voz

Tão grande, tão profunda, tão feroz

Que parecia vir da alma das cousas:


"Se todos os fenômenos complexos,

Desde a consciência à antítese dos sexos

Vem de um dínamo fluídico de gás,

Se hoje, obscuro, amanhã píncaros galgas,

A humildade botânica das algas

De que grandeza não será capaz?!


Quem sabe, enquanto Deus, Jeová ou Siva

Oculta à tua força cognitiva

Fenomenalidades que hão de vir,

Se a contração que hoje produz o choro

Não há de ser no século vindouro

Um simples movimento para rir?!


Que espécies outras, do Equador aos pólos,

Na prisão milenária dos subsolos,

Rasgando avidamente o húmus malsão.

Não trabalham, com a febre mais bravia,

Para erguer, na ânsia cósmica, a Energia

A última etapa da objetivação?!


É inútil, pois, que, a espiar enigmas, entres

Na química genésica dos ventres,

Porque em todas as coisas, afinal,

Crânio, ovário, montanha, árvore, iceberg,

Tragicamente, diante do Homem, se ergue

A esfinge do Mistério Universal!


A própria força em que teu Ser se expande,

Para esconder-se nessa esfinge grande,

Deu4e (oh! mistério que se não traduz!)

Neste astro ruim de tênebras e abrolhos

A efeméride orgânica dos olhos

E o simulacro atordoador da Luz!


Por isto, oh! filho dos terráqueos limos,

Nós, arvoredos desterrados, rimos

Das vãs diatribes com que aturdes o ar...

Rimos, isto é, choramos, porque, em suma,

Rir da desgraça que de ti ressuma

É quase a mesma coisa que chorar!"


As vibrações daquele horrível carme

Meu dispêndio nervoso era tamanho

Que eu sentia no corpo um vácuo estranho

Como uma boca sôfrega a esvaziar-me!


Na avançada epiléptica dos medos

Cria ouvir, a escalar Céus e apogeus,

A voz cavernosíssima de Deus,

Reproduzida pelos arvoredos!


Agora, astro decrépito, em destroços,

Eu, desgraçadamente magro, a erguer-me,

Tinha necessidade de esconder-me

Longe da espécie humana, com os meus ossos!


Restava apenas na minha alma bruta

Onde frutificara outrora o Amor

Uma volicional fome interior

De renúncia budística absoluta!


Porque, naquela noite de ânsia e inferno,

Eu fora, alheio ao mundanário ruído,

A maior expressão do homem vencido

Diante da sombra do Mistério Eterno!

22 de julho de 2008

Eu? Tu? - Carlos Drummond de Andrade


Tu? Eu?


Não morres satisfeito.
A vida te viveu
sem que vivesses nela.
E não te convenceu
nem deu motivo
para haver o ser vivo.

A vida te venceu
em luta desigual.
Era todo o passado
presente presidente
na polpa do futuro
acuando-te no beco.
Se morres derrotado,
não morres conformado.

Nem morres informado
dos termos da sentença
de tua morte, lida
antes de redigida.
Deram-te um defensor
cego surdo estrangeiro
que ora metia medo
ora extorquia amor.

Nem sabes se és culpado
de não ter culpa. Sabes
que morres todo o tempo
no ensaiar errado
que vai a cada instante
desensinando a morte
quanto mais a soletras,
sem que nascido, mores
onde, vivendo, morres.

Não morres satisfeito
de trocar tua morte
por outra mais (?) perfeita.
Não aceitas teu fim
como aceitaste os muitos
fins em volta de ti.

Testemunhaste a morte
no privilégio de ouro
de a sentires em vida
através de um aquário.
Eras tu que morrias
nesse, naquela; e vias
teu ser evaporado
fugir à percepção.
Estranho vivo, ausente
na suposta consciência
de imperador cativo.

Foste morrendo
como sobremorrente
no lodoso telhado
(era prêmio, castigo?)
de onde a vista captava
o que era abraço e não
durava ou se perdia
em guerra de extermínio,
horror de lado a lado.

E tudo foi a caça
veloz fugindo ao tiro
e o tiro se perdendo
em outra caça ou planta
ou barro, arame, gruta.
E a procura do tiro
e do atirador
(nem sequer tinha mãos),
a procura, a procura
da razão da procura.

Não morres satisfeito,
morres desinformado.

Carlos Drummond de Andrade